"O velho vovô" : mais um conto de ...
Manuel de Oliveira Paiva (1861-1892).
Porto do Mucuripe (Foto: google)
Em seu romance "A Afilhada", Oliveira Paiva (nome com o qual ficou mais conhecido), narra uma história social, fazendo evocações à sua cidade natal, Fortaleza, descrevendo lugares, ruas, bairros, com preciosos detalhes, por onde circulam os seus personagens. Neste conto, que agora trago a esta página, o autor descreve a região praieira, onde se instalou o primeiro porto da então província. Na sequência de fotos, postadas aqui,
a partir da primeira, do atual Porto do Mucuripe, os leitores verão imagens da Ponte Metálica, da Praia de Iracema (antiga Praia do Peixe), da Praia do Meireles, até ao primeiro porto, um trapiche, numa regressão fotográfica ao passado...
Porto do Mucuripe, em Fortaleza, capital do Ceará, em foto recente...
COSTA DO SOL NASCENTE: praias do Ceará a leste de Fortaleza.
COSTA DO SOL POENTE: praias do Ceará a oeste de Fortaleza.....
(Foto; google)
Ponte Metálica,preservada, um dos antigos portos de Fortaleza, na
Praia de Iracema (antiga Praia do Peixe), em foto recente.
(Foto: google)
Aqui, abro um parêntese, para dizer um pouco da "história" dos portos de Fortaleza...:
A Ponte Metálica foi o porto de Fortaleza até a década de 1950. Situa-se numa área na qual, por diversas vezes, existiu a construção de trapiches. O primeiro de que se tem notícia foi um trapiche datado de 1804. Depois foram construídos outros trapiches, dos quais o chamado trapiche do Elery, construído pelo inglês Henry Elery, provavelmente em 1844, que é considerado o mais famoso deles. Em 1857, foi construído um terceiro trapiche, sendo seu construtor Fernando Hitzshky, o qual mediu 154 metros de comprimento por 17,60 metros de largura.
No século XIX, Fortaleza desenvolveu-se muito como cidade e ainda não possuía um porto para exportar produtos como algodão café e couros.
(Fonte: Wikipédia; Obs.: No texto pesquisado, há informações sobre o Porto do Mucuripe).
Porto do Mucuripe, na Praia do Mucuripe, em foto da década de
1940 (Arquivo Nirez)
Praia do Meireles, onde ainda vê-se os antigos coqueirais, por toda
a orla marítima...até a antiga Paraia do Peixe, atual Praia de Iracema
(Foto: Arquivo Nirez).
Ponte Metálica, (antigo porto de Fortaleza) na Praia de Iracema.
(Foto: Arquivo Nirez)
Praia de Iracema, vendo-se ao fundo os antigos coqueirais (que
"deram lugar" às edificações (à esquerda) e a Ponte Metálica,
à direita, antigo porto, que está preservada.
(Foto: Arquivo Nirez)
Um dos muitos trapiches que serviram de porto, em Fortaleza.
(Foto: Arquivo Nirez)
Este foi o último trapiche , como porto de Fortaleza,
antes da Ponte Metálica, que foi preservada...
(Foto: Arquivo Nirez)
O velho vovô
por Manuel de Oliveira Paiva
O trapiche estava estava em seu antigo posto de honra, suspenso por uma elevada escada a cujos pés havia poços deixados pela maré, que se retraíra, e o oceano parecia magro, com os arrecifes à mostra, fugindo timoratamente, encolhido, medroso da terra. Uma interminável faixa de areia molhada, brandamente côncava, servia de guarda-pisa, entre o frouxel das ondas e o limiar da povoação. Em presença dessa depressão geral do oceano, sentia-se a sensação de quem desce - a falta de fôlego de uma vertigem.
Pausadamente, homens quase nus, de tanga e ceroula curta à guisa de calções entravam pelo mar adentro e abeiravam-se, com água pelos peitos, dos lanchões que oscilava apenas, carregados de mercadorias. O calor do sol untava de suor a esses trabalhadores, de linda musculatura atlética, que suspendiam fardos, com admirável precisão mecânica, e traziam-nos para o seco. Outros, em movimento contrário, embarcavam algodão e café e couros, desempilhando altas montanhas de gêneros acumulados pela areia, entre latadas de escaleres e esqueletos de lanchas velhas. Ao longe, se avistava o branco velejamento das jangadas que repousavam fora do alcance das ondas. E, por toda parte, como cercando o domínio do velho trapiche, espalhavam-se massas complicadas de ferro, quais membros esfacelados de um corpo gigantesco e bruto. Os navios amarrados, longe, lá estavam como abandonados no seio das águas, apenas visitados por tanchões vagarosos. E, de quando em vez, no deserto azul, passava a alvura imponente de uma jangada.
Recortado no peitoril do galpão que serve de vestíbulo à carcaça roxo-terra do velho trapiche, eu abismava o olhar nesse panorama vivo de sol, de terra e de águas. O firmamento era uma tela suspensa, que se encurvava, que se estirava pelos ignotos confins do poente que se cosia, rumo do norte, no debrum longínquo do céu com o mar. A cidade montada sobre mansos oiteiros, onde outrora rastejaram o zéfiro e as ondas, parecia ir descendo para as areias brancas, seio amorenado pelo resfolegar da luz. Os tetos, como escudos de tartaruga, se agachavam ebriamente, sob os tufos aéreos dos coqueiros, que dedilhavam uma harmonia vaga, impalpável, com luzimentos quentes, e roçavam ilusoriamente no azul que nos abafa com aquele bojo infinito, que nos persegue por toda parte, no campo, à rua,, pelas frestas, e pelas nesgas que se entrevê de dentro mesmo das habitações; esse azul que nos enraiva, que desafia o olhar ambicioso do artista para devastar o além dessa casca terrível que os antigos foram obrigados a julgar solidamente brochada de estrelas, de lua e de sol.
Voavam nuvens, verdadeiros flocos de espumas esparsas, macias que pareciam roçar nossas faces como cabelos finíssimos de crianças. Aquele azul sublime entrava-me pelas narinas!
E, finalmente, o mar enchia. Aqueles rochedos negros que emergiam à altura do porto, ia ser abafados. O comércio não podia mais refrear o ímpeto da onda. Soava a hora do paralisamento. Aí daquele que se arriscasse ao bruto! Os barquinhos e lanchas impavam aflitivamente. E só a jangada é que se aventurava a passar audaciosamente o rolo do mar.
Entretanto, o seio virgem das areias era, pela primeira vez, mordida pelo dente da ciência humana. O calmo inglês fazia aquele mesmo homem de tanga e ceroula à guisa de calção, batizar a sua terra pagã de indústria; e a fúria do mar batia-se tolamente; como os heróis da guerra ante os obscuros mineiros e os profundos pensadores: enterrava-se o primeiro pagão do viaduto, a primeira molécula daquele gigante que estava esfacelado pela praia afora.
E a massa roxo-terra do velho trapiche balançava-se na maré cheia, como barco encalhado, oco, apenas com os camarins de empregados e apetrechos de embarcações; o lampião da vigia apagado, fumaçoso, com o azeite frio; a luz entrando pelas gretas; - ele caíra aos pedaços, triste pela decepção, macambúzio! - ele, o velho vovô, do tempo em que minha avó dizia à minha inocência de criança que os meninos vêm é do mar, quando eu lhe perguntava donde a gente.
Amo tanto aquelas tábuas, e aquelas ondas brancas de cujo turbilhão eu via a cada instante rebentar um nenenzinho!
(1887)
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Vou e volto................................Um abraço!